quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O aprendiz de filósofo e o espírito que pairava sobre a água do aquário

Eis um trecho de "As Intermitências da Morte" de José Saramago:

Apesar de tudo, apesar dos falsos suicidas e dos sujos negócios da fronteira, o espírito de aqui continuava a pairar sobre as águas, não as do mar oceano, que esse banhava outras terras longe, mas sobre os lagos e os rios, sobre as ribeiras e os regatos, nos charcos que a chuva deixava ao passar, no luminoso fundo dos poços, que é onde melhor se percebe a altura a que está o céu, e, por mais extraordinário que pareça, também sobre a superfície tranquila dos aquários. Precisamente, foi quando, distraído, olhava o peixinho vermelho que viera boquejar à tona de água e quando se perguntava,já menos distraído, desde há quanto tempo é que não a renovava, bem sabia o que queria dizer o peixe quando uma vez e outra subia a romper a delgadíssima película em que a água se confunde com o ar, foi precisamente nesse momento revelador que ao aprendiz de filósofo se lhe apresentou, nítida e nua, a questão que iria dar origem à mais apaixonante e acesa polémica que se conhece de toda a história deste país em que não se morre. Eis o que o espírito que pairava sobre a água do aquário perguntou ao aprendiz de filósofo, Já pensaste se a morte será a mesma para todos os seres vivos, sejam eles animais, incluindo o ser humano, ou vegetais, incluindo a erva rasteira que se pisa e a sequoiadendron giganteum com os seus cem metros de altura, será a mesma a morte que mata um homem que sabe que vai morrer, e um cavalo que nunca o saberá. E tornou a perguntar, Em que momento morreu o bicho-da-seda depois de se ter fechado no casulo e posto a tranca à porta, como foi possível ter nascido a vida de uma da morte da outra, a vida da borboleta da morte da lagarta, e serem o mesmo diferentemente, ou não morreu o bicho-da-seda porque está vivo na borboleta. O aprendiz de filósofo respondeu, O bicho-da-seda não morreu, a borboleta é que morrerá, depois de desovar, Já o sabia eu antes que tu tivesses nascido, disse o espírito que paira sobre as águas do aquário, o bicho-da-seda não morreu, dentro do casulo não ficou nenhum cadáver depois de a borboleta ter saído, tu o disseste, um nasceu da morte do outro, Chama-se metamorfose, [...] Falávamos da morte, Não da morte, das mortes, perguntei por que razão não estão morrendo os seres humanos, e os outros animais, sim, por que razão a não-morte de uns não é a não-morte de outros, quando a este peixinho vermelho se lhe acabar a vida, e tenho que avisar-te que não tardará muito se não lhe mudares a água, serás tu capaz de reconhecer na morte dele aquela outra morte de que agora pareces estar a salvo, ignorando porquê, Antes, no tempo em que se morria, nas poucas vezes que me encontrei diante de pessoas que haviam falecido, nunca imaginei que a morte delas fosse a mesma de que eu um dia viria a morrer, Porque cada um de vós tem a sua própria morte, transporta-a consigo num lugar secreto desde que nasceu, ela pertence-te, tu pertences-lhe, E os animais, e os vegetais, Suponho que com eles se passará o mesmo, Cada qual com a sua morte, Assim é, Então as mortes são muitas, tantas como os seres vivos que existiram, existem e existirão, De certo modo, sim, Estás a contradizer-te, exclamou o aprendiz de filósofo, As mortes de cada um são mortes por assim dizer de vida limitada, subalternas, morrem com aquele a quem mataram, mas acima delas haverá outra morte maior, aquela que se ocupa do conjunto dos seres humanos desde o alvorecer da espécie, Há portanto uma hierarquia, Suponho que sim, E para os animais, desde o mais elementar protozoário à baleia azul, Também, E para os vegetais, desde o bacteriófito à sequóia gigante, esta citada antes em latim por causa do tamanho, Tanto quanto creio saber, o mesmo se passa com todos eles, Isto é, cada um com a sua morte própria, pessoal e intransmissível, Sim, E depois mais duas mortes gerais, uma para cada reino da natureza, Exacto, E acaba-se aía distribuição hierárquica das competências delegadas por tânatos, perguntou o aprendiz de filósofo, Até onde a minha imaginação consegue chegar, ainda vejo uma outra morte, a última, a suprema, Qual, Aquela que haverá de destruir o universo, essa que realmente merece o nome de morte, embora quando isso suceder já não se encontre ninguém aí para pronunciá-lo, o resto de que temos estado a falar não passa de pormenores ínfimos, de insignificâncias, Portanto, a morte não é única, Concluiu desnecessariamente o aprendiz de filósofo, É o que já estou cansado de te explicar, Quer dizer, uma morte, aquela que era nossa, suspendeu a actividade, as outras, as dos animais e dos vegetais, continuam a operar, são independentes, cada uma trabalhando no seu sector, Já estás convencido, Sim, Vai então e anuncia-o a toda a gente, disse o espírito que pairava sobre a água do aquário. E foi assim que a polémica começou.

4 comentários:

  1. muito bom pra pesquisa, gostei especialmente da parte que ele fala que nao imaginava que a morte seria igual para ele como a dos mortos que ele encontrou, é bem interessante trabalhar essa ideia na nossa hein

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  2. só pro seu comentário nao ficar sozinho e eu te incentivar.
    eu gosto dessa parte tbm, mas tbm gosto da que vem a seguir, que fala que cada um tem sua morte propria e unica.

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  3. mas ai eh tipo a diferenca de morte, e morrer, a morte é igual pra todos, mas cada um morre de um jeito, foi tipo isso que eu entendi, neh nao?

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  4. sim, é uma hierarquia. cada um tem sua morte, que nos acompanha desde que nascemos. mas cada morte dessa se deve a uma morte unica, que serve para todos os homens. no caso a mesma coisa com os animais ou plantas. e depois, cada morte dessas se deve a Morte suprema, que seria a morte do universo, de tudo.

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